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Em julho de 2021, eu e um grupo de amigos, que fazíamos trabalho voluntário em uma ocupação de moradia no sul da cidade de São Paulo, distrito do Grajaú, fomos surpreendidos por um pedido da associação de moradores da comunidade.
Em um momento ainda crítico da pandemia de Covid-19 a associação de moradores do bairro pediu ao nosso grupo para que os ajudássemos a construir um levantamento censitário. Depois de absorver a demanda, foi necessário pensar em como encarar esse desafio.
Contextualizando
Para permitir um contexto mais claro, é importante explicar alguns pontos: o Jardim da União é uma ocupação de moradia que nasceu em 2013 e, desde o seu surgimento, luta por existir com dignidade no espaço que hoje reside. Para manter sua presença no território, eles buscaram diversos apoios ao longo dos anos. Entre esses apoios, um grupo de professores da universidade de São Paulo se fez presente.
Em 2019, esse grupo de professores, todos arquitetos, organizou um curso para orientar profissionais da área sobre como construir as competências necessárias para atuar em periferias — que em muitos casos enfrentam problemas que vão além do que é ensinado na faculdade. Entre os estudantes desse curso estava eu.
Para que o curso ocorresse, foi necessária uma espécie de troca entre estudantes e moradores. Era necessário que os dois lados saíssem ganhando nessa história. Aprenderíamos com o território deles, mas era necessários que contribuíssemos com nossa expertise profissional. Para definir nossa atuação, consultamos com os moradores qual era a necessidade mais latente.
No momento em que chegamos lá, a ocupação estava em um período tenso, com disputas judiciais sobre a área que ocupa. Para essa luta na justiça, era importante para eles que determinados dados fossem gerados. Assim, nos solicitaram um levantamento censitário, para entender as características socioeconômicas da comunidade.
Com a missão em mãos, fizemos um questionário que se baseou em um formulário base, enviado pelo grupo que defendia judicialmente os moradores. Esse questionário apresentava questões sobre composição familiar, relação com o local e levantamento da situação física das moradias. A estes dados foram incorporadas as questões de titularidade do lote, como demandado pela associação e, também, questões referentes às construções das moradias — uma demandas dos arquitetos.
Durante dois finais de semanas, nós, um grupo de 30 pessoas, coletamos os dados de todas as casas da ocupação, batendo de porta em porta. Pensando agora parece bastante insano! A ocupação contava com mais de 400 casas naquele momento. Após alguma semanas, limpamos os dados e entregamos à associação de moradores.
Mesmo após alguns anos, um grupo de amigos que se formou a partir desse curso manteve contato com a comunidade e em julho de 2021, como mencionado anteriormente, os moradores solicitaram ajuda para um novo levantamento. A atualização se dava pela necessidade de dados para abastecer a nova demanda dos moradores naquele momento: o acesso aos documentos de posse das terras. Caso você não esteja familiarizado com o contexto de um território ocupado, existe um processo de construção contínua e é tão intensivo que em alguns meses a paisagem pode mudar consideravelmente.
Cena de “O Teto”, de Vittorio de Sica
Como acontece no clássico filme "O teto" de Vittorio de Sica, em muitos casos a residência pode ser edificada em um processo de mutirão com a ajuda dos amigos e vizinhos. Isso costuma acontecer muito rápido! E assim aconteceu com o Jardim da União.
O panorama da ocupação agora era muito diferente de dois anos antes. Enquanto em 2019 eles ainda estavam lutando para ficar no terreno, agora os serviços públicos de abastecimento, como água, esgoto e energia, já haviam sido regularizados na ocupação. Um passo importantíssimo. O próximo era a regularização da terra, com os moradores acessando seu terreno de maneira regular na justiça.
Assim, com o desafio colocado pelos moradores em mãos, entendemos que haviam dois problemas:
Problema 1:
Quais dados coletar no censo?
Problema 2:
Como executar a tarefa, levando em conta o contexto pandêmico?
Para responder ao primeiro, seguimos o caminho mais recomendado, dando voz a quem é peça principal desse processo: os moradores. Conversamos com eles e compreendemos qual era a finalidade específica para aqueles dados. Eles nos contaram que dentro da necessidade da regularização, precisavam dos dados para poder compreender melhor o contexto da ocupação, mostrar organização sobre o território (perante os órgãos públicos) e construir uma base de dados que fizesse com que uma regularização futura fluísse com mais rapidez.
Dessa forma, nos reunimos, pensamos e chegamos aos dados a ser obtidos no levantamento. Definimos que seria importante dividir as perguntas em duas seções, construindo um caminho que procurasse ser linear e racional entre os temas. Assim, a primeira seção conteve perguntas sobre questões da família, que tratou de dados pessoais, demográficos, de trabalho e de saúde. A segunda seção, foi sobre as residências, procurou entender a situação das habitações nos lotes e o nível de saneamento. E ficou assim:
Com um formulário feito por 15 questões e com média de preenchimento de 3 minutos, seguimos tentando entender como funcionaria. Nessa etapa, nós, um grupo de 8 pessoas, precisou discutir qual seria nosso papel ali. Coordenaríamos os levantamentos ou faríamos eles também? Depois de discutir, entendemos que por conta de termos alguma experiência em pesquisa (vários de nós estávamos no mestrado) e sabermos do rigor necessária na coleta de dados, era importante que a gente estivesse ativamente nesse processo.
Debatemos, também, sobre ferramenta: escolhemos, naquele momento, um aplicativo chamado Memento, que podia ser utilizado de qualquer smartphone. A escolha se deu por já conhecermos o app em levantamentos anteriores e pela praticidade que ele oferece. Hoje, olhando para esse momento e essa decisão, entendo que negligenciamos diversos pontos relacionados a proteção de dados. A verdade é que não sabíamos qual a política da plataforma com relação aos dados e hoje esse é um erro que minha atenção não permite mais repetir.
No fim, o ponto de maior debate foi sobre a execução do levantamento no território. Depois de longas horas de discussão e uma tentativa de prever o que poderia acontecer definimos que a melhor forma de entender é fazendo! Assim, sem muita certeza, concordamos que a princípio bateríamos de casa em casa e convidaríamos as pessoas para conversar na parte de fora da habitação, ao ar livre, para diminuir a chance de contágio do Covid-19, mas continuaríamos avaliando os métodos em cada semana. Entendemos que uma das vantagens de bater de casa em casa, na presença de um membro da associação, diminuiria o número de pessoas que não queriam responder.
O levantamento e seus desafios
Assim, no primeiro sábado de julho, saímos da região central de São Paulo por volta das 7h da manhã. Num carro com 5 pessoas, chegamos no União por volta das 9h. Lá, carregando nossa insegurança e sem muita certeza do que iria acontecer, nos paramentamos de máscaras e face shields e fomos bater de porta em porta. Procuramos seguir uma ordem por quadra, mas informações como quantos lotes cada um levantaria e as sequências de cada trajeto não foram definidas.
Para a nossa surpresa, fazer o levantamento dessa forma não foi a melhor ideia. Tivemos em torno de 50 respostas, de um universo de mais de 500 famílias. A intenção de que levássemos as pessoas para fora das próprias casas, ou mesmo que ficássemos na porta enquanto fazíamos as perguntas, claramente não funcionou. Hoje pensando sobre, é bastante claro entender que não é um processo natural, bater na casa de alguém e conversar com ela na parte de fora. As pessoas, quando recebem alguém procuram levar essa visita para a parte de dentro, mesmo estando em um contexto de levantamento censitário.
Nosso grupo se reunindo após um dos primeiros dias de pesquisa
Mesmo com os problemas constados nesse texto, olhando pra uma obra pronta, no momento não tivemos determinadas certezas e resolvemos continuar fazendo o levantamento dessa forma nesse primeiro final de semana e no seguinte. Foi só após o segundo fim de semana de levantamento que entendemos que era necessário mudar a forma de coleta, pois dessa forma o levantamento demoraria 3 meses para finalizarmos. Então, debatemos e repensamos a forma de execução. Também, fizemos ajustes ao questionário e compreendemos algumas aplicações erradas de questões, como por exemplo a questão que diz respeito a raça e etnia. Depois de alguns estudos entendemos que nossas opções para esse tema estava muito restritas e precisavam ser mais abrangentes.
Nos debates sobre a execução, com muita discordância, definimos que faríamos o levantamento em pontos fixos e a associação de moradores seria encarregada de agitar os moradores e chamá-los para comparecer no sábado pela manhã, em pontos específicos do bairro. Mais uma vez, nós iríamos testar na prática se esse caminho era efetivo ou não.
Então, no terceiro sábado, tomamos o mesmo rumo partindo do centro da cidade e assim que chegamos, nos estabelecemos e fomos para nosso ponto fixo, que era uma cobertura em uma das praças da ocupação. Para nossa surpresa, o número de entradas coletadas mais que dobrou e nosso trabalho foi muito mais otimizado. Também não precisamos nos preocupar tanto com o sol, que machucava forte nossos pescoços. Além disso, os moradores que nos auxiliaram na aplicação do censo estavam muito mais apropriados do processo de aplicação.
Um dia de levantamento no galpão coberto
Seguimos, então, no fim de semana seguinte (o quarto fim de semana) para o mesmo ponto fixo e obtivemos algo em torno de 100 entradas de dados, novamente.
Definimos, nesse momento da pesquisa, que só teríamos disponibilidade de mais um final de semana (o quinto) para finalizar os levantamento e precisaríamos coletar cerca de 20% a mais de dados do que nos dias anteriores. Nesse momento a gente contava com mais ou menos 400 famílias e precisava chegar em 500.
Mas aí veio a pergunta: como fazer isso? Parecia que nós já tínhamos esgotado nossa possibilidade de produtividade indo para um ponto que dobrou o número de família levantadas! Como aumentar ainda mais?
Nossa resposta veio a partir do entendimento de que a melhor forma pra que mais pessoas aparecessem era fazer com que nós ficássemos mais vistos, mais presente nos olhares das pessoas. Foi por isso que decidimos, em conjunto com a associação de moradores, mudar de lugar e ir para um ponto mais central do bairro, onde havia mais moradores passando.
Seguimos com esse plano e contamos com o comprometimento das lideranças para aumentar a força do convite a comunidade. Assim, no quinto e último sábado de levantamento, já em agosto, ficamos na garagem da casa de um dos moradores e lá estendemos diversas cadeiras e esperamos a chegada dos moradores.
Contando com a ajuda de São Pedro, que não enviou um sol escaldante nesse dia, pudemos chegar no nosso objetivo, com mais de 120 entradas no formulário! Esse momento foi o ápice de todo o processo. Com muita gente comparecendo, chegamos muito perto de finalizar todas as casas.
Dia de levantamento na garagem, com muitos moradores presentes
Por fim, em 5 finais de semana de coleta, levantamos 500 moradias e cerca de 1.300 moradores. Aproximadamente 90% da ocupação. Definimos, em conjunto com a associação de moradores, que mesmo não atingido todas as casas, poderíamos limpar e organizar os dados e passar para eles.
Processamento de dados e resultados
Depois do primeiro desafio, veio outro grande obstáculo, limpar e organizar os dados. Para isso, voltamos a realinhar as ideias com a associação de moradores e definimos como aconteceria essa entrega. Nessa conversa foi definido que eles precisavam dos dados brutos, mais sensíveis sobre as famílias, para colocar na ficha de cadastro de cada um e precisaram também de alguns gráficos que teriam um papel importante no aspecto de convencimento político.
Colocando a mão nas planilhas geradas, notamos que houve cerca de 20% de perda dos dados totais que foram coletados. Um número que considero muito alto! Durante a continuidade desse processo foi frustrante não conseguir coletar e organizar os dados da maneira com que gostaríamos, mas tendo em vista o fato de boa parte das pessoas que aplicou a pesquisa nunca ter feito essa prática na vida, é bastante compreensível.
Mesmo a perda de alguns dados, pudemos gerar gráficos que foram importantes para a ocupação na continuidade da luta por regularização e no próprio processo de reorganização e
re-conhecimento do seu contexto. É importante pontuar que esses dados não serão trazidos aqui nesse texto, por uma questão de segurança dos moradores e mesmo por não termos mais acessos à eles, estando os usos desses dados restritos a associação de moradores e sua comunicação.
Por fim, com menos impacto no resultado do que gostaríamos, mas fortalecendo muito o processo de organização interna e reconhecimento dos próprios moradores da importância da colaboração, entendo que o saldo desse levantamento no Jardim União foi satisfatório. Tanto do ponto de vista da comunidade quanto do nosso lado. Esse momento gerou, para mim, vários aprendizados sobre pesquisa, resolução de problemas e aprender fazendo que continuo carregando na minha jornada.
Ah, e caso você queira saber como está hoje o bairro Jardim da União, compartilho que anda muito bem, com base no último contato que fizemos. É verdade que a ocupação ainda não encontrou a regularização formal de suas casas e que há diversos problemas persistentes nas periferias das nossas cidades, mas encontra-se mais consolidada do que nunca! Há agora ruas pavimentadas, serviços públicos estabelecidos e novíssimas praças e quadras usadas pela comunidade nos seus momentos de lazer e confraternização. Essa conquista, claro, é fruto da luta dos moradores e da recusa a se manter imóvel durante todos esses anos.
O Jardim União em julho de 2023